
Basta chover de mansinho que a vida adquire outro ritmo. Alguma coisa diferente das tempestades, da chuva forte, de vento.
A chuva que cai de mansinho dá outra cadência ao tempo. Não existe a pressa de sair de casa, porque não é prenúncio de temporal; não há necessidade de esperar um pouco mais antes de pegar o caminho da rua, até que passe, porque sabe-se, não vai passar tão cedo; ela é apenas chuva que cai de mansinho e não tem hora pra acabar.
Não se pensa em apressar os passos, no meio de uma chuva fina, nem se cogita de ir lá fora tomar banho de chuva. É um outro movimento, que se estabelece. É diferente. Completamente diverso, basta olhar da janela, de onde quer que você esteja, para perceber que a vida é outra, num dia de chuva que cai de mansinho. Os homens da obra trabalham, mas não assobiam sambas-enredo do próximo Carnaval; o sibilar é do Bolero de Ravel. As empregadas domésticas ouvem notícias, no rádio, e abandonam a 98 FM, num dia em que a chuva cai de mansinho. Do forno, em cada cozinha, sai um pão de queijo. O café quentinho perfuma os ambientes e nada se faz no ritmo alucinado de um dia de sol quente ou no
pianissimo típico de uma grande tempestade, quando parece que debaixo do edredon o tempo vai parar. Não se lava a varanda, porque chuva que cai de mansinho nem parece molhar; também não se lava roupa, porque não vai secar. Chuva assim, de mansinho, só lava a alma...
Pode-se pensar em tudo, num dia de chuva. Se a chuva é forte, pensa-se na tragédia, no se eu morrer, nos barrancos que se quedam, nos deslizamentos de terra; se é de vento, a chuva, pensa-se nas saias que levantam, nos cabelos que se fingem lisos e não vão resistir, no guarda-chuva que vira, no frio que faz; mas se é mansinha, a chuva que cai, só se pensa no passado ou no futuro, como se entre a vida e a morte só existisse o amor...
Num dia de chuva que cai assim, de mansinho, deseja-se um dia inteiro de boas recordações, porque a nostalgia é a única que bate a nossa porta, e se não abrimos ela fica ali, sentada, à espera, passando bilhetes por debaixo da porta, soprando melancolia pelo buraco da fechadura até que nos rendamos. E se é pra entrar, que traga boas lembranças.
Se cai um temporal, é diferente. Corre-se para trancar tudo, portas, janelas, coração... não há frestas, nenhuma tv ligada, e só se pensa na proteção. Na chuva que cai de mansinho, você sabe, o coração é o primeiro a se abrir, e nem nos barracos de pau-a-pique existem a correria, a apreensão, as orações de quem tem medo de que a casa caia. Ninguém imagina que a casa vá cair porque abrigou mais um por um dia. Mesmo que o hóspede seja a nostalgia, só até a chuva passar. Só por este dia...
Quando a chuva cai de mansinho lá fora, tudo é poesia aqui dentro; não a poesia frenética das paixões de verão com marcas de sol sobre a pele nem a poesia estrondosa de um céu cheio de raios e trovões das grandes tempestades; é a poesia acústica, do ritmo próprio de um dia em que a chuva que cai cai de mansinho.