segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Eu sei, mas não devia - Marina Colasanti

Você ao menos já ouviu falar em Marina Colasanti. Mas sabia que Marina nasceu na Etiópia, em Asmara, que morou 11 anos na Itália e só então veio viver no Brasil? Sabia que é casada com Affonso Romano de Sant'Anna, o mineiro, poeta e escritor? Pois é, eu não sabia...

Com "Eu sei, mas não devia", livro que contém o texto que você vai ler agora, Marina Colasanti ganhou, em 1997, o Prêmio Jabuti. Eu já citei fragmentos desse texto algumas vezes, aqui, mas hoje resolvi postá-lo integralmente, para que a gente, de uma vez por todas, pare com isso de se acostumar pra evitar feridas, pra poupar a vida, que aos poucos se gasta e, antes mesmo do final, se perde de si mesma.

Eu sei, mas não devia


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Marina Colasanti in "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco.


27 comentários:

Mônica disse...

Não sei se já leu " E por falar em amor", e, caso não, fica a indicação...

Ela dedica o livro assim: " " Para Affonso, meu todo partilhado"

( não é lindo isso???)

* boneca, depois da primeira tese, temos outra a defender:os comentaristas anônimos, sem noção e que julgam ser os donos da verdade...vai lá que vc vai entender! beijos

Custódia C. disse...

Obrigado Suzi!
Por me dares a conhecer a Marina, que não conhecia ...
Adorei o texto. É tão verdadeiro que às vezes até faz doer ...

Janaina disse...

E não é é lindo?
O que a Mo indica eu li. É perfeito.

Janaina disse...

Adendo: eu tava louca pra saber em que blog eu tinha lido a receita do bolo de caneca. Achei que tinha sido lá na xará. Depois lembrei que foi aqui. Fiquei fuçando até achar. Hauahauahaua. Isso é que lombriga hiperativa.
:)

Suzi disse...

Tá anotada, a indicação, Mumumu. Não li, ainda. Já tá na lista.
Coisa mais linda, isso de "meu todo partilhado"... Uia!
;o)

____
quanto ao mais, vou conferir. já. rs*

Suzi disse...

Pois é nessa parte aí, Custódia, quando começa a doer, que ele me fez mais sentido! É preciso viver, sem essa de se acostumar. O pior de tudo é que a gente sabe que se acostuma... mas não devia. Não devia mesmo!
;o)

Suzi disse...

hehehehehe
Jana, essa de "lombriga hiperativa" foi ótima!!!!
kkkkkkkkkkkkkkkkk

Tem uma outra, na caneca também, de fubá. Vou pegar com a minha irmã e anotar aqui.
A gente faz pro lanchinho de sexta-feira, tá?
;)

__________
dupla indicação do livro? preciso já!, então.

Luís F. disse...

Excelente texto, está lá tudo…

Suzi disse...

tudinho.
:o\

JEANS E CAMISETA disse...

Eu já conhecia esse texto, mas precisamos saber isso todos os dias,então obrigada por me fazer lembrar. Eu tinha esquecido, e não devia...rsrsr
Bjim

Anônimo disse...

Eu realmente estava precisando ler isso!! Tá virando rotina, eu ler algo aq e sair com a mistura de uma lágrima com um sorriso de esperança!!!
Beijão, Suzi!!!



*Ah, tem um presentinho pra vc lá no meu porto, ancora por lá, tá?!
Beijos

Anônimo disse...

Texto maravilhoso!
Obrigada por este momento...
Revi-me em certas frases... E doeu!
Beijos *.*

Lilica disse...

Algumas coisas somos obrigados a aceitar, como por exemplo, a chefa que fuma o dia todo em local fechado, porque ou acostuma, ou pede as contas! E aí danou-se!!!
Mas algumas coisas dependem apenas de nós para serem mudadas. Eu acordo 1 hora e meia antes do trabalho, faço tudo sossegada, ainda tiro um cochilinho na cama de mammys! E isso me faz um bem danado! Agora, dormir no bus, eu faço porque é uma delícia!!!! E ainda chego em casa mais disposta pra aproveitar a noite!!!
Suzi, adorei o texto, adorei mesmo!
Beijão

Mosana disse...

esse texto é mermo lindooooooo!!!
:)
eu já até tinha ele guardadinho aqui no micro!
Kisses
PS: meu micro nem mudou a hora! será a idade do pobre?! auhauahauhau

Anônimo disse...

Gostei muito mesmo! Já anotei pra indicar no CLube do Livro.
Beijão!

osátiro disse...

A gente se acostuma ao dia a dia e até nem lembra os pobres, os famintos, os sem teto...
Ou os que são barbaramente assassinados, de forma gratuita, matar só por matar.
Cristãos perseguidos na Índia, Iraque, Congo, Paquistão.
Por favor, passe no meu blog: há informações úteis para brasileiros.
Obrigado

Suzi disse...

Pois é, Cris. Tinha esquecido? Não devia...
;o)

Suzi disse...

Nossa, Su, praticamente não visitei ninguém, hoje.
Mas vou lá ver meu presentinho.
;o)

Suzi disse...

É, Guiga. Que a dor nos desperte...

Suzi disse...

Lilica, só você mesmo... "domri no bus é uma delícia".
hehehehehe!!!

Beijo!!!

Suzi disse...

Não Mosana, não... Não maltrata i bichinho... O calendário dele, apenas, é que não estava programado para mudar automaticamente para horário d everão. Sábado, portanto, você terá de alterar a data manualmente... Não é problema de idade não, tadinho...

:o)

Suzi disse...

Aproveita e anota também esse aí que a Moniquita e a Jana indicaram, Danny!

Suzi disse...

O sátiro, fui lá e dei uma olhada rápida. Prometo que amanhã passo lá com mais tempo e leio o artigo com bastante atenção.
"Matar só por matar..." É. Não dá pra acostumar...

Pripa disse...

Adorei!!!
Valeu mesmo!
Bjs

Pod papo - Pod música disse...

Excelente texto!
A gente se acostuma a votar sempre no mesmo político e depois reclamamos que o país não muda. Tantos fracassos na nossa vida fizeram a gente se acostumar com fracassos mas, só consegue vencer quem não se acostuma com a derrota e batalha para realizar seus sonhos e para fazer o melhor. A pessoa que vence é aquela que não se acostuma com derrotas e tropeços, ela se acostuma com a vitória. Vamos nos acostumar a vencer e não a perder. Vamos nos acostumar com o que faz bem a nossa saúde e não com o que faz mal. Vamos nos acostumar com o que faz bem para a sociedade e para a natureza, não com o que destrói.

Beijão!

Suzi disse...

Olá, moça da Polêmica! :)

Seja bem-vinda por aqui. e se achar que este canto lhe fez bem, acostume-se a voltar!
;)

Beijo!

Anônimo disse...

Parabéns!

o Blog é ótimo! atualize por favor!
Bjs

Paula
anjo3003@hotmail.com