quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

De Rubem Alves para Artur da Távola

Sempre gostei muito, muito, muito do Rubem Alves e de suas letrinhas. Artur da Távala, também, sempre gostei dele, como escritor, jornalista. Fiquei feliz quando li Clarice dizendo que ele era "encantatório". Hoje, trago pra gente ler e reler uma crônica do R.Alves escrita na semana seguinte à da morte do Artur da Távola. Uma carta, na verdade. De um amigo a outro.

MEU QUERIDO ARTUR DA TÁVOLA
Onze de maio. Manhã luminosa de domingo. Fosse num domingo passado e eu estaria me preparando para encontrar-me com você no programa "Quem tem medo de música clássica", na TV Senado, altar onde adoro meus deuses. Você era o sacerdote, era música.

Você sorria e convidava as crianças a se assentar e ouvir. Você era um mestre bondoso. Alguns pensam que música clássica é coisa para adultos esnobes. Você, ao contrário, sabia que até as crianças gostam dela. Num dos seus programas, você revelou que era ainda criança quando pela primeira vez a música clássica o assombrou -foi a "Rapsódia Húngara nº 2", de Liszt. E, desde então, você não parou mais de se assombrar.

Faz alguns domingos você já estava diante do "Grande Mistério", fiquei sabendo depois. O programa foi a repetição de um programa antigo. Lá estava você cheio de vida exercendo a função que mais amava, a de mestre de música clássica. Você acreditava que a música clássica, além de nos dar a alegria da beleza, tinha também o poder de produzir a bondade. Ouvindo música, a alma fica mais mansa. E você sorria aquele sorriso aberto ao explicar as coisas mais simples, o fagote, o pífaro, as cordas, o contraponto. Mais que uma experiência estética, era uma magia:você ficava inteiro possuído pela música, o que aparecia evidente no seu rosto, nos seus olhos -que vagavam pelo espaço à procura de palavras para dizer o indizível.

O seu coração estava cansado. Não conseguia bater com forças próprias. Então você, numa decisão de feiticeiro, escolheu a 5ª Sinfonia de Beethoven. Ah! A 5ª Sinfonia, que se inicia com aqueles quatro acordes tremendos. Os entendidos dizem que esses quatro acordes são o "destino que bate à porta". De fato, naquele momento o destino estava batendo à sua porta... Talvez você imaginasse que o seu coração poderia ser ressuscitado pela força daqueles quatro acordes de força insuperável. E, depois dos quatro acordes, o coração se enchia de vida, a música se acelerava, corria, galopava...

Foi assim que eu sempre o vi: corpo e alma identificados com a beleza da música. Mas os olhos não vêem a mesma coisa. William Blake, num aforismo, disse que "o tolo não vê a mesma árvore que o sábio vê". E Bernardo Soares explica por que: "O que vemos não é o que vemos, é o que somos". Eu o vi com o que sou, olhos de quem ama a música. Mas alguns o vêem com olhos diferentes, também verdadeiros, e você aparece então como político integro, crítico de televisão, jornalista.

Li com atenção o material que a Folha lhe dedicou (10 de maio, A-14). Não sei se você, de onde está, o leu também. Eu o procurei no meio das palavras. Sabe que a palavra "música" não aparece mencionada nem uma vez? Achei isso um esquecimento lamentável. Eles se lembraram do que você era como guerreiro, sempre em luta pela justiça. O que é muito bom. Mas se esqueceram de que, na sua utopia, a única função da política é abrir espaço para a beleza.

Quanto a mim, eu me lembrarei sempre de você sorridente e feliz ao final do programa, quando você dava sua última lição, como se fosse um mantra ao final de uma liturgia sagrada: "Música é vida interior. E quem tem vida interior jamais padecerá de solidão".

Rubem Alves

10 comentários:

Custódia C. disse...

Belo texto! Quanta emoção!

Suzi disse...

Entre citações e conclusões próprias, Rubem Alves nos brinda com esse texto, inteiro de emoção.
Bom dia, Ccc!

Anônimo disse...

Dói muito despedirmo-nos de um amigo. Sei bem o que isso é, pois infelizmente já passei por isso...
Mas haja as recordações, as palavras, para recordá-los sempre.
Beijos para ti!
*.*

Custódia C. disse...

Voltei para dizer que jaquinzinho é carapau muito pequeno, que se come frito. É uma delicia sim :):)

Éverton Vidal Azevedo disse...

Lindo texto. Conheci o Artur da Távala através da minha namorada. Na verdade eu só o reconheci, já conhecia o político e jornalista.

Mas aquele programa dele de música era uma beleza mesmo. Coisa de fazer falta na tv. Né verdade?

Já conhecia o texto. Reli e fui agraciado de novo. Segurei isso aqui:

"O que vemos não é o que vemos, é o que somos".

Concordo. É verdade.

Valeu Suzi.
Bj.
Inté!

Anônimo disse...

Lindo demais....
Nem sei o que dizer!!!

Beijos,. Suzi!!
Saudades imensas de ti

Custódia C. disse...

Querida Suzi, voltei de novo!
Tu tiras-me do sério :):)
Depois de carapau, jã não sei o que dizer, a palavra chicharro, diz-te alguma coisa? (é um carapau grande).
Em conclusão, o carapau pequeno é parecido com a sardinha, é menos brilhante e não é um peixe gordo. Ajudou?
:):)

João Moreira disse...

Olá,
Acho, esta, uma forma inteligente e emocionante, de lidar com a perda…
Fica bem
Beijos perfumados

Amigao disse...

Não conheci o programa de música mas sempre admirei os dois personagens do seu post.A frase final tem muito a ver com tudo que sou e acredito.

"Quem tem vida interior jamais padecerá de solidão"

Beijão do amigão!

Natália disse...

E Bernardo Soares explica por que: "O que vemos não é o que vemos, é o que somos"

Amei esse trecho, Suzi.

Muito lindo esse texto!

Um beijo e bom carnaval, mesmo que o seu seja assim meio nerdando, como o meu.