Eu lembro quando Jardel Filho morreu.
A novela da época era SOL DE VERÃO, do Manoel Carlos. Lembro que eu não acompanhava a novela, mas via alguns capítulos e Jardel fazia "par romântico", como se costumava falar à época, com a belíssima Irene Ravache, excelente atriz. Era o começo dos anos 80. Lembro do Jornal Nacional noticiando a morte do ator. E lembro do choque que tomei com a notícia. A morte sempre choca... Naquela noite, a novela foi interrompida para uma fala de Gianfrancesco Guarnieri - outro que já nos deixou. Os outros atores falaram alguma coisa também, eu acho. Mas eu me lembro mesmo é do Guarnieri. Achei aquele texto de uma sensibilidade e tanto! E até hoje fico esperando que aconteça o mesmo, quando alguém morre de verdade no meio de uma novela. Mas não fazem mais isso... E fico achando uma falta de respeito. Lembro do Guarniere falando e das imagens do Jardel Filho, como Heitor, num retrospecto das cenas que fizera. Manoel Carlos não conseguiu terminar de escrever a novela. O Guarnieiri e o Lauro C. Muniz assumiram o texto e a novela acabou antes da data prevista. Acho que foi a morte que mais me comoveu, entre atores.
O lance é que naquela noite o Guarnieri declamou um texto lindo e comovente. Depois, lendo a crônica do dia seguinte, do Artur da Távola, fiquei sabendo que o texto era do Maneco. Artur da Távola me fez a grata gentileza de gravar em fita k7 o texto, na hora em que passou na novela; e depois transcreveu tudo, para que pudéssemos guardar. Eu guardei. E agora transcrevo também e divido com você. Quem viveu esse momento, vai se lembrar.
GUARNIERI. "Peço que não me considerem pessoalmente mas como todos os atores do elenco desta novela. Peço mais: que vocês procurem me ver como todos os atores do mundo, multiplicado, ainda, pelas milhares de vidas que nós já vivemos, dentro de vocês, no teatro, no cinema e na televisão. Eu quero ser, portanto, aqui, agora, essa multidão de pessoas, de máscaras e de personagens: o ator. Eu peço a todos um instante de reflexão, sobre esse velho ofício de esconder a própria vida, sacrificá-la, mesmo, em benefício de outras, fictícias, mas que acabam se igualando à verdadeira, tão bem elas são vividas. É por isso que o homem-ator precisa ter tantas vidas dentro de si: para que sobre alguma para ele, apesar de tantas que ele oferece ao público, sem egoísmo.
Vivemos daqui, todos os dias, um pouco dessa agonia: a do perder-se para encontrar-se. Esse é o nosso sacerdócio diário e perpétuo: o da doação.
Albert Camus, em suas observações sobre o ator, refere-se a esse sacerdócio e a como o ator reina no domínio do mortal; como a sua glória é a mais efêmera das glórias. Mas nós sabemos que todas as glórias são efêmeras. E é por isso que o ator sabe mais que todos os homens, que tudo tem que morrer, um dia! Só que pior que a morte, para ele, é não representar porque não representar significa morrer cem vezes com as cem personagens que ele teria animado ou ressuscitado.
Por isso quando morre um ator, morrem tantas pessoas com ele. É no tempo que ele organiza as suas personagens. É, também, no tempo, que ele aprende a dominá-las. E quanto mais vidas ele viveu, ele melhor se separa delas. O ator percorre os séculos e os espíritos, imitando o homem tal como ele é ou tal como pode ser. Ele é um viajante do tempo e das almas e é, também, o ator, que, vivendo um papel, morre, debaixo de um rosto que não é o seu.
Numa peça de teatro, num filme ou novela de televisão, ele vai até o fim de um caminho que o público leva a vida inteira para percorrer. Se é verdade que a vida continua, é verdade, também, que ela fica mais pobre quando a gente perde uma pessoa querida. Estamos hoje, portanto, muito mais pobres. (SEGUE-SE FALA DE HEITOR PERGUNTANDO PARA ONDE VAI A INTELIGÊNCIA DO HOMEM QUANDO ELE MORRE) (Volta Guarnieri).
GUARNIERI - Se a energia de um único homem, seus sonhos, seus planos, sua inteligência, sua beleza interior, se tudo isso fica no ar e ainda nos comove por tanto tempo, o que dizer quando morre um ator e deixa a energia, os sonhos, os planos de todos os personagens que viveu? Essa energia, esses sonhos, esses planos, esse perpétuo continuar, tudo isso fica em nós que prosseguimos e em vocês que nos assistem e sabem o sacrifício que nós fazemos.
Quando a grande Cacilda Becker morreu, Carlos Drummond de Andrade disse: 'Morreram Cacilda Becker'.
E assim deve ser dito sempre. Agora! 'Morreram Jardel Filho'. Que fiquem entre nós os anseios e a perseverança de seu último personagem. (ENTRA HEITOR. NUMA PASSAGEM EM QUE PEDE AJUDA A ABEL). -
GUARNIERI - Ele queria ajuda. E nós vamos ajudá-lo nessa tarefa.
VOLTA HEITOR - Responde, com toda a sinceridade, Abel, do fundo do coração: o que é mais importante: uma pessoa ou muitas? (Chora) (Gagueja). Tem essa oficina que é meu ganha pão e de tanta gente! Tem essa casa aqui onde come tanta gente que precisa. Tem esse jardim aí que você fez, um jardim que era num terreno que não tinha nada e agora está cheio de crianças que não tinham onde brincar. O que é isso? E a comunidade, Abel, a união das pessoas! (VOLTA GUARNIERI).
GUARNIERI - O Jardim Jardel, vai ser preser-, o. Porque a semente frutificou e vingou. (VOLTA HEITOR).
HEITOR - Me ajuda, Abel. Me ajuda, rapaz e diz: você não acha certo que alguém morra por muitos? O sacrifício de uma pessoa não vale a felicidade de a porção de gente? O que é mais importante: um o ou todas as crianças? Um pai ou todos os homens? U'a mãe ou todas as mulheres? (Chora copiosamente) (Abraça-se a Abel) É uma coisa que só depende de mim. Ninguém pode me ajudar. Mas eu queria dividir com alguém, ter alguém para me ajudar a carregar esse peso (Sobe música) (VOLTA GUARNIERI E CONCLUI).
GUARNIERI - Jardel, Heitor: é com nós todos que você vai dividir esse peso, mas, também, essa esperança! Como dizia Guimarães Rosa: 'Você não morreu: ficou encantado'."
Vivemos daqui, todos os dias, um pouco dessa agonia: a do perder-se para encontrar-se. Esse é o nosso sacerdócio diário e perpétuo: o da doação.
Albert Camus, em suas observações sobre o ator, refere-se a esse sacerdócio e a como o ator reina no domínio do mortal; como a sua glória é a mais efêmera das glórias. Mas nós sabemos que todas as glórias são efêmeras. E é por isso que o ator sabe mais que todos os homens, que tudo tem que morrer, um dia! Só que pior que a morte, para ele, é não representar porque não representar significa morrer cem vezes com as cem personagens que ele teria animado ou ressuscitado.
Por isso quando morre um ator, morrem tantas pessoas com ele. É no tempo que ele organiza as suas personagens. É, também, no tempo, que ele aprende a dominá-las. E quanto mais vidas ele viveu, ele melhor se separa delas. O ator percorre os séculos e os espíritos, imitando o homem tal como ele é ou tal como pode ser. Ele é um viajante do tempo e das almas e é, também, o ator, que, vivendo um papel, morre, debaixo de um rosto que não é o seu.
Numa peça de teatro, num filme ou novela de televisão, ele vai até o fim de um caminho que o público leva a vida inteira para percorrer. Se é verdade que a vida continua, é verdade, também, que ela fica mais pobre quando a gente perde uma pessoa querida. Estamos hoje, portanto, muito mais pobres. (SEGUE-SE FALA DE HEITOR PERGUNTANDO PARA ONDE VAI A INTELIGÊNCIA DO HOMEM QUANDO ELE MORRE) (Volta Guarnieri).
GUARNIERI - Se a energia de um único homem, seus sonhos, seus planos, sua inteligência, sua beleza interior, se tudo isso fica no ar e ainda nos comove por tanto tempo, o que dizer quando morre um ator e deixa a energia, os sonhos, os planos de todos os personagens que viveu? Essa energia, esses sonhos, esses planos, esse perpétuo continuar, tudo isso fica em nós que prosseguimos e em vocês que nos assistem e sabem o sacrifício que nós fazemos.
Quando a grande Cacilda Becker morreu, Carlos Drummond de Andrade disse: 'Morreram Cacilda Becker'.
E assim deve ser dito sempre. Agora! 'Morreram Jardel Filho'. Que fiquem entre nós os anseios e a perseverança de seu último personagem. (ENTRA HEITOR. NUMA PASSAGEM EM QUE PEDE AJUDA A ABEL). -
GUARNIERI - Ele queria ajuda. E nós vamos ajudá-lo nessa tarefa.
VOLTA HEITOR - Responde, com toda a sinceridade, Abel, do fundo do coração: o que é mais importante: uma pessoa ou muitas? (Chora) (Gagueja). Tem essa oficina que é meu ganha pão e de tanta gente! Tem essa casa aqui onde come tanta gente que precisa. Tem esse jardim aí que você fez, um jardim que era num terreno que não tinha nada e agora está cheio de crianças que não tinham onde brincar. O que é isso? E a comunidade, Abel, a união das pessoas! (VOLTA GUARNIERI).
GUARNIERI - O Jardim Jardel, vai ser preser-, o. Porque a semente frutificou e vingou. (VOLTA HEITOR).
HEITOR - Me ajuda, Abel. Me ajuda, rapaz e diz: você não acha certo que alguém morra por muitos? O sacrifício de uma pessoa não vale a felicidade de a porção de gente? O que é mais importante: um o ou todas as crianças? Um pai ou todos os homens? U'a mãe ou todas as mulheres? (Chora copiosamente) (Abraça-se a Abel) É uma coisa que só depende de mim. Ninguém pode me ajudar. Mas eu queria dividir com alguém, ter alguém para me ajudar a carregar esse peso (Sobe música) (VOLTA GUARNIERI E CONCLUI).
GUARNIERI - Jardel, Heitor: é com nós todos que você vai dividir esse peso, mas, também, essa esperança! Como dizia Guimarães Rosa: 'Você não morreu: ficou encantado'."
16 comentários:
Bunita, será que de manhã eu fico mais hã que o resto do dia?
Achei legal o texto, hoje é aniversário de morte de algum deles? É isso, homenagem?
Desculpa lindinha, amanhã conversamos e vc desenha pra mim,rsss :(
beijossss
cara, eu lembro disso...tinha 16 anos e me encantei com o universo dos surdos por conta do Abel, personagem do Tony Ramos...e fui ler Guimarâes Rosa por conta dessa citação... me lembro dos olhos azuis do JF... e do narigão da Debora Bloch...rs...
rs*
não! que eu saiba, não morreu ninguém hoje. mas eu estava mexendo nas gavetas de novo... e achei esse texto.
só isso mesmo.
que barato, moniquete! que barato!
também lembro daquelas bolotas azuis do JF. e, é mesmo... a DB tinha mó narigão! kkkkkkkkk
Que lindo relembrares isso. Não me recordo, talvez por ser bem pequena e também não tenho a certeza se passou cá.. Mas, tens razão, já não há aquele respeito de antigamente!
Voltei de férias!
Espero por visita!
Beijos*.*
Que coisa mais linda Suzi!! Puxa você se lembra disso e vc é muito mais nova que eu, que sensibilidade prá prestar atenção viu?
Beijos!!
Caramba! Eu me lembro disso! É a primeira novela de que me lembro! Eu tinha uns quatro anos e não entendia nada da novela, mas assistia com meus irmãos!
Hoje tudo é descartável, efêmero. Quer ator maior que Raul Cortez? E o que vimos para homenageá-lo? Tivemos que ligar a TV na RTPi.
[[Vergonha]]
Oi, Olga,
bom retorno ao trabalho; a volta das férias deixa sempre um gostinho de "quero mais", não é mesmo?
Quanto à novela, é curioso como algumas coisas marcam a gente. Como ficam na memória! Eu era criança, também, nem acompanhava novelas; mas esse lance me marcou tanto! Curioso, isso, né?
J@de, não sei se sou assim tão muito mais nova que você... rs* Mas é curioso, mesmo, como eu me lembro perfeitamente de tudo! Isso era começo dos anos 80, menina! E o legal foi achar esse recorte, agora. Um barato, mesmo.
Taí, Sujeito. Exatamente isso!! Raul Cortez morreu e foi dada uma nota ridícula no Jornal da Globo à meia-noite. Acho uma falta de respeito, isso. Parece aquela idéia: "morreu, morreu, antes ele do que eu" e pronto. Se não der pra fazer sensasionalismo - como quando alguém se joga da janela ou algo assim - não merece espaço. A Ariclê Perez estava no ar, na minissérie do JK. Eu fui assistir o capítulo, sempre esperando o lance que fizeram com o Jardel... Mas isso, definitivamente, não acontece mais.
Huumm... não lembro disso, não... A única morte de artista que lembro, que me marcou foi a da Daniela Peres. Mas acho que foi mais pela brutalidade do crime e tal. Bjs.
Tem razão, Dani.
A da Daniela Perez é um ótimo exemplo do destaque que se dá quando há crueldade, na morte.
Sem querer ser mórbida, se é pra escolher, eu escolho a morte do Jardel e tudo o que a acompanhou...
;o)
Que interessante... não lembro da mensagem propriamente, mas lembro que foi uma comoção nacional, nunca tinha visto autor fazer homenagem desse tipo dentro da novela, talvez isso tenha m mercado mais.
PS.: Irene Ravache no auge da beleza... e parece q hj n mudou muita coisa rsrs.
Olá, Tartus!
Legal, você também lembrar disso. O momento foi marcante, a morte inesperada, e a homenagem singular!
E você está certo! Irene Ravache continua belíssima!
___________
Seja bem-vindo! Que volte outras vezes, de dia, de noite, madrugada, tudo bem! Vai chegando e pode ir ficando, tá bom?
Não lembro da novela, acho que nao foi do meu tempo.Mas o texto é belissímo.Tenho um amigo, ator, que chorou ao ler.rsrsrs
Oi, anônimo,
pra quem é "de Eliana pra cá" (rs*) "Sol de Verão" só mesmo no Video Show. mas o texto foi muito belo, mesmo. Seu amigo leu o texto na época ou leu agora?
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