sábado, 25 de agosto de 2007

Feliz Sábado!!

Você vai ler um poema triste, de uma infância triste, de alguém que desafiou todas as previsões, contrariou todos os prognósticos, ultrapassou os preconceitos e ignorou as maldições, sem talvez nunca ter se dado conta disso. "Melhor fora não ter nascido", se disse. Mas nasceu. E viveu. Escreveu. Encantou. E delicadamente nos ofertou sua prosa e suas poesias, para mostrar - quem sabe, sem saber! - que não importa o tamanho da dificuldade, é preciso vencer; um dia a amargura, a feiúra, a dor, tudo passa... E assim, sobrevivendo a tudo, exsurge a vitória, desponta o triunfo de quem lutou sem se dar conta, se fez grande se achando menor, e que alterou o curso das coisas achando que se acomodou. Alguém que transformou "a mediocridade do seu destino" em uma lição de amor e perdão.
"Impossível viver sem perdoar, impossível morrer sem amor..." (E.V.)

Pense nisto e tenha um FELIZ SÁBADO, não importa a calamidade que esteja atingido você!


Pintura de Ary Salles

Minha infância (Freudiana)

Éramos quatro as filhas de minha mãe.
Entre elas ocupei sempre o pior lugar.
Duas me precederam - eram lindas, mimadas.
Devia ser a última, no entanto,
veio outra que ficou sendo a caçula.

Quando nasci, meu velho Pai agonizava,
logo após morria.
Cresci filha sem pai,
secundária na turma das irmãs.

Eu era triste, nervosa e feia.
Amarela, de rosto empalamado.
De pernas moles, caindo à toa.
Os que assim me viam - diziam:
"- Essa menina é o retrato vivo
do velho pai doente."
Tinha medo das estórias
que ouvia, então, contar:
assombração, lobisomem, mula-sem-cabeça.
Almas penadas do outro mundo e do capeta.
Tinha as pernas moles
e os joelhos sempre machucados,
feridos, esfolados.
De tanto que caía.
Caía à toa.

Caía nos degraus.
Caía no lajedo do terreiro.
Chorava, importunava.
De dentro a casa comandava:
"- Levanta, moleirona."

Minhas pernas moles desajudavam.
Gritava, gemia.
De dentro a casa respondia:
"- Levanta, pandorga."

Caía à toa...
nos degraus da escada,
no lajeado do terreiro.
Chorava. Chamava. Reclamava.
De dentro a casa se impacientava:
"- Levanta, perna-mole..."

E a moleirona, pandorga, perna-mole
se levantava com seu próprio esforço.

Meus brinquedos...
Coquilhos de palmeira.
Bonecas de pano.
Caquinhos de louça.
Cavalinhos de forquilha.
Viagens infindáveis...
Meu mundo imaginário
mesclado à realidade.

E a casa me cortava: "- menina inzoneira!"
Companhia indesejável - sempre pronta
a sair com minhas irmãs,
era de ver as arrelias
e as tramas que faziam
para saírem juntas
e me deixarem sozinha,
sempre em casa.

A rua... a rua!...
(Atração lúdica, anseio vivo da criança,
mundo sugestivo de maravilhosas descobertas)
- proibida às meninas do meu tempo.
Rígidos preconceitos familiares,
normas abusivas de educação
- emparedavam.

A rua. A ponte. Gente que passava,
o rio mesmo, correndo debaixo da janela,
eu via por um vidro quebrado, da vidraça
empanada.

Na quietude sepulcral da casa,
era proibida, incomodava, a fala alta,
a risada franca, o grito espontâneo,
a turbulência ativa das crianças.

Contenção... motivação... Comportamento estreito,
limitando, estreitando exuberâncias,
pisando sensibilidades.
A gesta dentro de mim...
Um mundo heróico, sublimado,
superposto, insuspeitado,
misturado à realidade.

E a casa alheada, sem pressentir a gestação,
acrimoniosa repisava:
"- Menina inzoneira!"
O sinapismo do ablativo
queimava.

Intimidada, diminuída. Incompreendida.
Atitudes impostas, falsas, contrafeitas.
Repreensões ferinas, humilhantes.
E o medo de falar...
E a certeza de estar sempre errando...
Aprender a ficar calada.
Menina abobada, ouvindo sem responder.

Daí, no fim da minha vida,
esta cinza que me cobre...
Este desejo obscuro, amargo, anárquico
de me esconder,
mudar o ser, não ser,
sumir, desaparecer,
e reaparecer
numa anônima criatura
sem compromisso de classe, de família.

Eu era triste, nervosa e feia.
Chorona.
Amarela de rosto empalamado,
de pernas moles, caindo à toa.
Um velho tio que assim me via
- dizia:
"- Esta filha de minha sobrinha é idiota.
Melhor fora não ter nascido!"

Melhor fora não ter nascido...
Feia, medrosa e triste.
Criada à moda antiga,
- ralhos e castigos.
Espezinhada, domada.
Que trabalho imenso dei à casa
para me torcer, retorcer,
medir e desmedir.
E me fazer tão outra,
diferente,
do que eu deveria ser.
Triste, nervosa e feia.
Amarela de rosto empapuçado.
De pernas moles, caindo à toa.
Retrato vivo de um velho doente.
Indesejável entre as irmãs.

Sem carinho de mãe.
Sem proteção de pai...
- melhor fora não ter nascido.

E nunca realizei nada na vida.
Sempre a inferioridade me tolheu.
E foi assim, sem luta, que me acomodei
na mediocridade de meu destino.
Cora Coralina
in "Poemas dos becos de Goiás e estórias mais"

13 comentários:

Mônica disse...

isso é lindo demais, boneca!!!!

Alba Regina disse...

afinal tudo passa. não é?! sabado lindo de doer né não?! beijo!!!!

Anônimo disse...

Lindo sábado bunita!
beijos

Suzi disse...

lindo, doído, e comovente.
não tem "samba de raiz", mumumu?
pois é... acho que cora coralina faz poemas de raiz.

Suzi disse...

ceuzinho azul bem clarinho, quase branco, nuvenzinhas de nada enfeitando, e sol amarelão, colorindo um dos últimos sábados do inverno.
a primavera já está às portas, bibinha!!

Suzi disse...

pra ti também clarinha!
lindo sábado, bonito e feliz, como devem ser todos os sábados!

Sujeito Oculto disse...

Não vim ao mundo para vencer. Vim para viver.

Suzi disse...

às vezes só viver não nos basta, sujeito.
imagine se cora apenas vivesse...
... não teria sobrevivido.
eu acho assim.
;o)

Anônimo disse...

Triste, mas real para muitas crianças com as quais compartilho meus dias: crianças de classe popular, como dizem.
Vou copiar e levar para meus professores. Sair um pouco da casca faz um bem danado.

Anônimo disse...

Uma perguntinha: por que quando se clica no link do número de "quantos estão agora na casa da Suzi" somos levados para um site de crifras de músicas? É só comigo, por causa da minha ligação com a música? Bjs.

Anônimo disse...

Hehehe, curiosa que sou fui lá "quantos estão agora na casa da Suzi" e também caí num site de musica.
Aff! agora vou dormir, querida
beijos

Suzi disse...

Issaê, Diesel!
Leve para seus professores o texto da Cora, e traga pra mim o "quanto vale ou é por quilo?", que até hoje eu não vi... rs*

Suzi disse...

E respondendo às mocinhas:
o site de música é o patrocinador do contador de visitas "on line".
hehehehehe!!!

acho que eles sabem que o povo é curioso e vai clicar e bolaram essa estratégia na "má-intenção" mesmo! :o))

(acreditem: vcs não foram as únicas a clicar, curiosas; mas foram as únicas que se entregaram! rs*)