terça-feira, 5 de março de 2013

Mais umas de Rubem Alves

É notória, pra quem me conhece, minha admiração por Rubem Alves. Gosto por demais!
Li dia desses um texto seu, escrito há um certo tempo, em que tratou da "função cultural das privadas". Num outro dia, comentando sobre esse texto que ele mesmo escrevera, arrematou:

"Conversando com a Vera, que trabalha em empresa, relações humanas, tivemos uma idéia brilhante. E se as empresas passarem a colocar, semanalmente, na porta diante do trono, um trecho literário curto, para ser lido em dois minutos? Naquele lugar todos se sentem compelidos à leitura! Os resultados poderiam surpreender!" (Correio Popular, Caderno C, 27/05/2001)

Pois é... Já pensou nisso?
Bem, quer ler o texto da "privada"? Vale muito a leitura. Parece sério mas é divertido. É divertido mas é sério...
Lá vai:

Sobre a função cultural das privadas

O que a solidão de um banheiro pode proporcionar


- Por gentileza, a senhora podia me dizer onde fica a privada?

A anfitriã, ao ouvir a palavra "privada", assusta-se e ruboriza-se. Privada não é palavra que se fale. Trata de remendar: 

- Ah, o banheiro... O banheiro fica no fim daque­le corredor...

O homem encaminha-se para o local indicado, intrigado: 

- Eu já tomei banho. Não quero tomar banho de novo... 

Mas logo, ao entrar no banheiro, vê que a anfitriã estava enganada. Lá não há nem banheira e nem chuveiro. Só há uma privada - que é, precisamente, aquilo que ele está procurando.

Não é educado falar "privada", principalmente pelo fato de que essa palavra é sinônima da "latrina", palavra de música feia, há muito fora de uso. Exceto nos escritos do Manoel de Barros, que diz: "Também as latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro - elas podem um dia milagrar violetas." Mas como as pessoas comuns não leem o Manoel de Barros, não se pode esperar que elas, ao ouvir a palavra "latrina", pensem em violetas.

O educado é "banheiro". E também "toilette" que, segundo o dicionário, é "ato de se lavar, pentear e vestir". Mas quando uma pessoa pergunta pelo banheiro ou pelo toalete ela não está pensando em tomar banho ou se lavar. Está pensando em outra coisa. 

A primeira vez que fui aos Estados Unidos, arranhando inglês, numa escola, premido por forças fisiológicas, procurei o dito quarto. E logo vi, numa porta, escrito: "Private". 

Achei que "private" era "privada". Entrei pela porta. Mas logo descobri que "private" queria dizer que aquele era um cômodo onde eu não podia entrar. Quando, pela primeira vez, desci num aeroporto nos Estados Unidos, e vi placas indicando "rest-rooms", achei que eram salas "vip", com poltronas confortáveis, onde as pessoas descansavam, porque "rest-room",  traduzido literalmente é "quarto de repouso". Mas não era. Era o lugar onde estavam as privadas e mictórios. 

Estou propondo que se recupere a dignidade da palavra "privada". Pois suspeito que ela esteja ligada a "privacidade", como o "private" americano. A privada é o lugar onde estamos sós e ninguém tem o direito de nos incomodar. Lugar de refúgio, santuário de solidão. Quando a gente está na privada não tem que se comportar direito, não tem de prestar atenção ao que os outros estão dizendo. É um lugar de liberdade e honestidade. Em reuniões, quando a agitação é muita, esse recurso é muito eficaz. 

- Vocês me dão licença... 

Sem explicar nada, todo mundo sabe que nos retiramos por motivos imperiosos. Não sabem que o que a gente deseja é ficar sozinho. Ali a gente não tem de estar sorrindo,  não tem de achar as piadas engraçadas,  pode se dar ao luxo de não falar.

Educação, como se sabe, se faz com livros. Mas, com os inúmeros estímulos da televisão e a correria da vida, as pessoas leem cada vez menos e, com isso, ficam burras cada vez mais. Mas a privada, onde nada nos perturba e ninguém tem o direito de nos interromper (a menos que você seja dos tolos que levam o telefone para a privada), é um lugar excepcional para a leitura. 

Rubem Alves Educador e escritor 

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