Estou no Recreio dos Bandeirantes, numa tarde linda de sol, mas não estou na praia. Bem longe do que eu planejei para um dos poucos dias de sol neste janeiro do Rio de Janeiro, estou numa sala com um aparelho de ar condicionado mantendo a temperatura a 21ºC e isso pra mim é inverno.
Estou com fome. Fome mesmo. Tomei uma vitamina de manhã e vim pra cá. Não sei a que horas vou comer. Logo, se tenho apetite sem esperança, é fome.
Aqui na loja em que eu estou as pessoas me tratam bem, em regra. Mas não resolvem os meus problemas. Elas precisam dar um jeito em várias coisas e até tentam. Na maioria das vezes sem tentar me enrolar. Ocorre que uma vez eles tentaram isso... Não deu certo e não foi bom. E agora o moço que tentou me enrolar da outra vez nem apareceu e todos os outros estão me tratando ainda melhor do que nas vezes anteriores. Mas, à vista da demora, parece que, de novo, não vão resolver meus problemas.
Todo mundo gosta de ser bem tratado. E acho que ninguém gostaria de precisar escolher entre ser bem tratado e ter os seus problemas resolvidos. No mundo ideal as pessoas que podem resolver seus problemas resolvem, e durante o processo vocês se tratam bem, mutuamente.
Estou escrevendo pra me distrair. Pra esquecer a fome. Mas a cabeça já dói. O bom humor tá saindo pelas frestinhas da porta e eu quero ir embora pra minha casa... Enquanto isso, seria bem legal se chegasse aqui uma "empada praiana", um queijo quente ou mesmo uma coxinha...
De onde estou posso ver o meu carro. Não vejo ninguém trabalhando nele, mas agora existem aquelas coisas de trabalhar remotamente... então não é certo eu afirmar que nada está sendo feito nem que o carro tá lá parado, enquanto eu sofro querendo um pouco de comida.
Um carro deve custar muito caro. Faz sentido. São muitos salários para pagar, aqui. Vejo pelo menos quatro pessoas na sala a minha frente e elas conversam bastante entre si. Devem estar buscando soluções para resolver problemas dos clientes. Ã-han... Às vezes elas respondem algum email, também. Eu acho (porque vejo uma tela do Gmail aberta). Elas usam os janelões de vidro que cercam as salas para conferir o visual (cabelo, batom, gravata, cintura...), e as paredes servem de apoio para o corpo enquanto se acomodam para bater papo. As cadeiras são usadas para descansar e os espaços entre as mesas são utilizados constantemente por um rapaz que mantém suas mãos no bolso e o sorriso no rosto para as meninas. Todos parecem felizes. Acho que é porque estão solucionando problemas...
A menina que está sentada de costas pra mim mexe bastante no próprio celular e não dá pra esconder, pelo menos de mim, que as atualizações do Facebook estão em dia. Mas a tela do Word está aberta no monitor à nossa frente há pelo menos uns quarenta minutos, e pode ser que ela ainda faça alguma anotação ali. Antes disso, claro, ela precisa levantar pra atualizar os colegas, levando o celular à mesa de cada um. Como está fazendo agora. Isso se chama "compartilhar ao vivo".
Passam-se três ou quatro minutos e ela retorna, agora que já compartilhou. O rapaz continua em pé, circulando pelos espaços da sala, mãos no bolso, até que senta de lado, pra conversar melhor com a outra colega. A moça do Facebook continua com a tela aberta no mesmo documento e vidrada no celular. Enquanto isso o moço já se levantou novamente e está vendo alguma coisa na mesa da outra moça...
Eu ficaria aqui me distraindo com isso até que eles me avisassem que o meu carro está pronto e meus problemas resolvidos. Mas eu faria isso se realmente estivesse convencida de que escrever disfarça a fome. Mas não tá funcionando.
O rapaz volta com um cafezinho. Um.
Egoísta.
16h30. Meu telefone toca. Fico mais meia hora me distraindo. Olho de novo e não tem ninguém na sala. Mas os monitores continuam ligados. Desligo o celular e vou buscar notícias do meu carro, porque ninguém me atualiza de nada (e eu dizendo que me tratavam bem...). No caminho encontro o moço que quis me enrolar daquela vez. Sorriso amarelo, perguntou se estava tudo bem. Sorriso amarelo retribuído.
São cinco horas da tarde. O carro continua ali, parado, e disseram apenas que o Chefe da Oficina foi testar um carro e já volta pra falar comigo.
Cinco e meia.
Daqui posso ver que o senhor chefe da oficina já está de volta. Vejo também que meu carro continua no mesmo lugar, a sala aqui da frente permanece vazia e com o monitor ligado, e noto que uma das moças deu uma passadinha por lá; eu continuo aqui no inverno de 21ºC, a fome continua, e não há sensação alguma de que as coisas estejam indo bem para mim.
Vou parar por aqui. Não há previsão de um final feliz. E se eu perder a calma vou dar uma de Mafalda e gritar: BASTA!
Torcendo pra não errar a vogal.
UPDATE:
17h48 voltam duas moças que trabalham na sala aqui da frente. Pessoas começam a entrar no meu carro. Outras olham pela janela...
17h54 volta a terceira moça da sala. Todas estão sentadas, agora. Uma empresta à outra o cabo do carregador do celular. A página do Gmail que estava aberta serve pra responder um email. Sim! Um email é respondido. Um.
17h57. Meu carro sai da baia onde estava estacionado. Vejo que estão dando umas voltinhas com ele na frente da loja. Deve ser um teste. Da minha paciência, provavelmente.
Ninguém me procura...
Devem achar que resolvi dormir aqui esta noite.
18h05. O rapaz da sala em frente também voltou. Mas só pra tirar o celular da tomada, guardar o carregador, e sair de novo.
18h07, a moça do Facebook, a que respondeu o email, está agora fazendo uma ligação para um cliente. Deve estar resolvendo "mais um problema".
18h08. Desligou.
Eu também.