Sempre fui uma apaixonada pelo Rubem Alves.
Muito me encantam sua inteligência, sua habilidade com as palavras, a analogia com as histórias da Bíblia, as metáforas, sua capacidade de nos envolver em suas conversas, o tom intimista de seus ensinamentos, a clareza das ideias, a beleza da pessoa, sua lucidez...
O texto abaixo foi escrito em 2002, e provavelmente havia um contexto político; talvez, sei lá, é bem possível...
É um texto atual, todavia; com ideias e lições bem mais amplas que meramente políticas, ou puramente ligadas a eleições e tal; é mais social e até afetivo do que político.
Vale a leitura.
E vale refletir: "a voz do povo é a voz de Deus" é, nada mais, que um dito popular.
Boa semana, pessoal!
Beijinhos e boa semana. Como diria um amigão meu: "Mas boa semana meeeesmo!!"
(por Rubem Alves)
- O povo unido jamais será vencido: é disso que eu tenho medo. Com a democracia o “povo“ expulsou Deus da ordem política: Vox populi, vox Dei – a voz do povo é voz de Deus. Não sei se foi bom negócio porque o fato é que a vontade do povo é de uma imensa mediocridade. Na Bíblia o povo e Deus andam sempre em direções opostas. Bastou que Moisés se distraísse, no alto de uma montanha, para que o povo, na planície, se entregasse a um carnaval idólatra desenfreado. Voltando das alturas e vendo aquela farra Moisés ficou tão furioso que quebrou as tábuas onde os 10 mandamentos estavam escritos. E há a linda estória do profeta Oséias, homem apaixonado! Seu coração se derretia ao contemplar o rosto da mulher que amava! Mas ela tinha outras idéias. No fundo, era uma prostituta. Pulava de amante a amante enquanto o amor de Oséias pulava de perdão a perdão. Até que ela o abandonou... Passado muito tempo, Oséias perambulava solitário pelo mercado de escravos... E que foi que ele viu? Viu a sua amada sendo vendida como escrava. Oséias não teve dúvidas. Comprou-a e disse: “Agora você será sempre minha, para sempre...“ Pois o profeta transformou a sua desdita amorosa numa parábola do amor de Deus. Deus era assim, como ele. Amava um povo de todo o seu coração. Mas o povo que ele amava era uma prostituta. E a amava como prostituta, prostituta mesmo e não prostituta arrependida que virou santa de mãos postas e olhos revirados para o céu. Que Deus ama o povo-prostituta é fato. Mas que esse povo-prostituta seja digno de confiança está errado. Veja o caso dos profetas: foram homens solitários. O povo não gostava deles. Em nada se pareciam com esses padres e pregadores que agitam as massas, fazem reuniões espetaculares para milhares de pessoas e têm programas de televisão. Quem fazia isso eram os falsos profetas. O povo sempre segue os falsos profetas porque o povo gosta de mentiras. As mentiras são doces. A verdade é amarga. Os políticos romanos sabiam que é fácil enrolar o povo. Basta dar-lhe pão e circo. O povo se vende a preço barato. No tempo dos romanos o circo era os cristãos sendo devorados pelos leões. E como o povo gostava do sangue e dos gritos! As coisas mudaram. Os cristãos, de comida para os leões, se transformaram em donos do circo. O espetáculo cristão era diferente, mais perfumado: judeus, bruxas e hereges sendo queimados em praças públicas. Para a edificação da fé. As praças ficavam apinhadas com o povo em festa, se alegrando com o cheiro de churrasco e os gritos. Aconselho a leitura do livro de Noah Gordon O último judeu. Reinhold Niebuhr, teólogo moral protestante, escreveu um livro fascinante com o título Homem moral e sociedade imoral. Ele chama a nossa atenção para o fato de que os indivíduos, quando isolados, são seres morais. Eles são “perturbados“ pela voz da consciência que lhes diz: “Isso não deve ser feito“ ou “Isso deve ser feito“. Sentem-se “responsáveis“ por aquilo que fazem. Mas quando eles passam a pertencer a um grupo, a consciência individual é silenciada pelas emoções coletivas. Indivíduos que, isoladamente, são incapazes de fazer mal a uma borboleta, se incorporados a um grupo tornam-se capazes de linchar um indivíduo. Ou de pôr fogo num índio adormecido. Ou de matar friamente um homem sequestrado indefeso. Ou de jogar uma bomba no meio da torcida do time rival. Precisei fazer força para ler o livro do Saramago Ensaio sobre a cegueira. Fracassei na primeira tentativa. O livro me revolveu as vísceras. Foi demais. Não aguentei. Um ano depois eu retomei a leitura, aguentei o horror e fui até o fim. Saramago descreve uma cidade onde todos ficam cegos. Ficando todos cegos, os indivíduos perdem a sua condição de seres morais. E o que acontece é inimaginável. Indivíduos são seres morais. Mas o povo não é moral. O povo é uma prostituta que se vende a preço baixo. Meu amigo Lisâneas Maciel, no meio de uma campanha eleitoral, me dizia que estava difícil porque o outro candidato a deputado estava comprando votos a troco de franguinhos da Sadia. E a democracia se faz com os votos do povo. Seria maravilhoso se o povo agisse de forma racional, segundo a verdade e segundo os interesses da coletividade. Mas uma das características do povo é a facilidade com que ele é enganado. O povo é movido pelo poder das imagens e não pelo poder da razão. Na verdade, quem decide as eleições são os produtores de imagens. Os partidos tratam de comprar, a preço de ouro, os melhores produtores de imagens. Os votos, nas eleições, dizem quem é o melhor produtor de imagens... O povo não pensa. Somente os indivíduos pensam. Mas o povo detesta os indivíduos, isto é, aqueles que, em meio à irracionalidade coletiva, continuam a pensar. Uma coisa é o ideal democrático, que eu amo. Outra coisa são as práticas de engano pelas quais o povo é seduzido. O povo é a massa de manobra sobre a qual os espertos trabalham. Nem Freud, nem Nietzsche e nem Jesus Cristo confiavam no povo... Durante a Revolução Cultural na China de Mao-Tse-Tung, o povo queimava violinos em nome da verdade proletária. Não sei que outras coisas o povo é capaz de queimar. O povo alemão amava o Führer. O Führer também amava o povo alemão. O Nazismo era um governo para o povo. Tanto assim que ele fez criar, para o povo alemão, o mais famoso de todos os automóveis: o Volkswagen. Volk, em alemão, quer dizer “povo“... O povo unido jamais será vencido! Tenho vários gostos que não são populares. Alguns já me acusaram de gostos aristocráticos... Mas, que posso fazer? Gosto de Bach, de Brahms, de Fernando Pessoa, de Nietzsche, de Saramago, de silêncio, não gosto de churrasco, não gosto de rock, não gosto de música sertaneja, não gosto de futebol (tive a desgraça de viajar por duas vezes, de avião, com um time de futebol...). Tenho medo de que, num eventual triunfo do gosto do povo, eu venha a ser obrigado a queimar os meus gostos e a engolir sapos a repetir slogans, à semelhança do que aconteceu na China. De vez em quando, raramente, o povo fica bonito. Quando isso acontece, surge a esperança. Mas, para que esse acontecimento raro aconteça é preciso que um poeta entoe uma canção e o povo escute: Caminhando e cantando e seguindo a canção...
3 comentários:
Tens razão Suzi, é um belo texto e leva-nos a muitas reflexões.
Pois é, ccc.
Época de eleições, aqui, e, a par disto, sempre é tempo de refletir não apenas acerca da política; mas principalmente, da vida.
;)
Beijos,
Saudades!!!
Ele é ótimo...
Sábio com as palavras e principalmente quando trata de educação.
Bjim!!!!!!!!!!!!!!!
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