"Minha prezada Maísa:
Sabe você com que cores se costuma pintar os maus momentos e as aflições alheias. Ontem, por exemplo, disseram-me, na rua, que você, num só desespero, além de cortar os pulsos, abrira o gás do banheiro e ingerira uma dose violentíssima de certos comprimidos tóxicos. Era a notícia que corria em Copacabana, depois das seis da tarde. Mais tarde, nas boates, todos diziam que o seu estado era desesperador, aguardando-se o desenlace para cada momento.
Comentei com amigos o desperdício dos suicídios e, no seu caso especial, o absurdo de uma jovem tão bonita, tão artista, tão cheia de êxitos, tender, constantemente, para a desistência do bem essencial a todos os bens, que é a vida. Hoje, graças a Deus, os noticiários da imprensa contaram a história direito, explicando que você apenas tomara um pileque maior e alguns comprimidos além de Miltown.
...
Mas, minha prezada Maísa... Queria conversar sobre a morte, dentro da verdade irrefutável de que a vida, mesmo quando não chega a ser uma delícia, é uma fascinante experiência de luta e coragem, bela não só nos momentos de intensa felicidade, como, e mais ainda, nos transes dolorosos, de que saímos mais livres e fortes. Não quero dizer com isso que sofrer seja bom. Boa é a nossa convicção de sobrevivência a todas as injustiças que nos fazem à carne e à alma.
O suicídio contém uma desforra, e este é o seu lado fascinante. Mas o suicídio contém a morte, e este é o seu defeito irreparável. Nunca morrer hoje, quando se pode morrer amanhã... ou daqui a cem anos. Há muito o que ver e sentir, há muito o que amar! Em mim e em meus semelhantes mais intranqüilos haverá, um dia, aquela manhã clara e azul, e, com os olhos da alma sossegada, veremos toda a beleza da rosa, toda a luz do lago duro e prisioneiro, o sopro da manhã cheia de pássaros, o convite do amor no ser que passa.
Quantas vezes estive cansado, infeliz da minha completa impossibilidade, cativo da hora improtelável, faltado de todo o bem-querer humano, faltoso a todos os meus compromissos e, mesmo assim, estive certo dessa manhã que nos aguarda a todos. Há uma série de acontecimentos recentes em minha vida, que só por eles jamais cometeria a ingratidão de me matar. Poderia enumerar alguns: o caminho de Versalhes, a descida do Tejo, a estrada de Teresópolis, a noite que acabo de dormir, pesadamente. Em tudo isto quanto apego a esta minha vida sem método, por este destino sem porto de chegada, pelo meu coração, que só deseja o acaso dos homens e das coisas! Que incontida necessidade de confiar! Que lúcida noção de todas as minhas falhas... E, mesmo assim, viver! Ninguém recebeu o conselho dos mortos. Por isso, ninguém se deve matar.
Minha jovem amiga, abra uma janela de sua casa - a que dá para o mar ou para a montanha. Procure o mundo e dê-se por perdida. Viva, sem a nervosia de procurar-se a si mesma, porque cada um de nós é um perdido, um ilustre perdido na humanidade vária e numerosa. Viva, que no fim dá certo. É o seu amigo, A.M.
Sabe você com que cores se costuma pintar os maus momentos e as aflições alheias. Ontem, por exemplo, disseram-me, na rua, que você, num só desespero, além de cortar os pulsos, abrira o gás do banheiro e ingerira uma dose violentíssima de certos comprimidos tóxicos. Era a notícia que corria em Copacabana, depois das seis da tarde. Mais tarde, nas boates, todos diziam que o seu estado era desesperador, aguardando-se o desenlace para cada momento.
Comentei com amigos o desperdício dos suicídios e, no seu caso especial, o absurdo de uma jovem tão bonita, tão artista, tão cheia de êxitos, tender, constantemente, para a desistência do bem essencial a todos os bens, que é a vida. Hoje, graças a Deus, os noticiários da imprensa contaram a história direito, explicando que você apenas tomara um pileque maior e alguns comprimidos além de Miltown.
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Mas, minha prezada Maísa... Queria conversar sobre a morte, dentro da verdade irrefutável de que a vida, mesmo quando não chega a ser uma delícia, é uma fascinante experiência de luta e coragem, bela não só nos momentos de intensa felicidade, como, e mais ainda, nos transes dolorosos, de que saímos mais livres e fortes. Não quero dizer com isso que sofrer seja bom. Boa é a nossa convicção de sobrevivência a todas as injustiças que nos fazem à carne e à alma.
O suicídio contém uma desforra, e este é o seu lado fascinante. Mas o suicídio contém a morte, e este é o seu defeito irreparável. Nunca morrer hoje, quando se pode morrer amanhã... ou daqui a cem anos. Há muito o que ver e sentir, há muito o que amar! Em mim e em meus semelhantes mais intranqüilos haverá, um dia, aquela manhã clara e azul, e, com os olhos da alma sossegada, veremos toda a beleza da rosa, toda a luz do lago duro e prisioneiro, o sopro da manhã cheia de pássaros, o convite do amor no ser que passa.
Quantas vezes estive cansado, infeliz da minha completa impossibilidade, cativo da hora improtelável, faltado de todo o bem-querer humano, faltoso a todos os meus compromissos e, mesmo assim, estive certo dessa manhã que nos aguarda a todos. Há uma série de acontecimentos recentes em minha vida, que só por eles jamais cometeria a ingratidão de me matar. Poderia enumerar alguns: o caminho de Versalhes, a descida do Tejo, a estrada de Teresópolis, a noite que acabo de dormir, pesadamente. Em tudo isto quanto apego a esta minha vida sem método, por este destino sem porto de chegada, pelo meu coração, que só deseja o acaso dos homens e das coisas! Que incontida necessidade de confiar! Que lúcida noção de todas as minhas falhas... E, mesmo assim, viver! Ninguém recebeu o conselho dos mortos. Por isso, ninguém se deve matar.
Minha jovem amiga, abra uma janela de sua casa - a que dá para o mar ou para a montanha. Procure o mundo e dê-se por perdida. Viva, sem a nervosia de procurar-se a si mesma, porque cada um de nós é um perdido, um ilustre perdido na humanidade vária e numerosa. Viva, que no fim dá certo. É o seu amigo, A.M.
5/6/1958"
10 comentários:
bah, Suzi, a carta é ainda mais emocionante em todo esse contexto! coisa mais linda, mais triste, mais verdadeira. que amigo é esse que se preocupa tanto, que sentimento pleno e belo... amei amei amei! emocionante é o mínimo para definir essa carta...
bjus!
Foi muito bom ler isto.Estava pensando neste assunto agora mesmo.
Beijos do amigão
"Procure o mundo e dê-se por perdida..."
É mesmo isso!
tocante demais, não é, nessita?
chega a dar uma dor...
"transmimento de pensação", amigão??
;o)
"Procure o mundo e dê-se por perdida..."
Sim, é mesmo isso!
"Viva, que no fim da certo."
E é isso também, Martita!
;o)
Linda esta carta e sempre oportuna...
olá, vitoria, bem-vinda por aqui!
saúde e vida, pra você.
portas e janelas (da casa e da alma) sempre abertas!!
pqp!!!!!! coisa mais linda!!!!
e se eu disser que encontrei uma edição (bem pobrinha mas bem linda) do "crônicas antonio maria", pra você, você acredita? pois é... e nada de a gente se encontrar, né, mumumu??
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